domingo, 16 de março de 2008

José Barreto, a amargura inquietante de poeta




O meu amigo José Barreto (com quem fui cúmplice nos tempos do Serviço Cívico que, com o apoio do MFA, organizámos no Bairro dos Pescadores da Costa Nova) é um ilhavense de alma plena que desde há muitos anos acredita que a cultura é uma imensa praça pública onde todos nos podemos reunir sem necessidade de despirmos as diferenças que aparentemente nos separam. Da sua sensibilidade, recortada incessantemente pela amargura inquietante de poeta, deixo-vos uns brevíssimos excertos de uma notas que elaborou a meu pedido (e que certamente poderemos ler mais desenvolvidas um dia destes, quando José Barreto decidir fazer o livro que estas suas palavras fazem adivinhar).


(...)


"Nascido filho de pescador à linha no bacalhau e de mulher doméstica, ambos de Ílhavo, neto de avô homem do mar e mulher do campo, pelo lado paterno, de homem serrano, com vistas para a laguna do Vouga, relojoeiro e ourives de profissão, e mulher gafanhôa pelo lado materno, nasceu pobre de recursos mas honrado. Criado nos becos ao centro da Vila, nos frios da invernia ou sob o tecto folhado das tílias do jardim municipal, passou meses à borda d'água com o cheiro salgado dos lugres por companhia, dias a marulhar ao resguardo do Neptuno, navio bacalhoeiro à linha fundeado no Tejo, com lembranças de fragatas afanadas no estuário e a ausência determinante do convívio com mais garotada. Foi protegido de mãe, filho único, quase tímido, cheio de afectos e recônditos de alma, talhado nas mínguas da convivência e das celebrações.

(...)

"Aprecia a boa literatura, tem um fraquinho por gastronomia e não vagabunda mais porque o pesado sentido de responsabilidade que o move não lho permite. Politicamente à esquerda socialista, não tem os políticos em muito boa conta, odeia as manobras da classe e se pudesse viver sem eles dispensava-os sem hesitar. Sobre o liberalismo económico vigente
acode-lhe pensar que o mundo anda às avessas e em boa parte perdido. "


(...)

"Se um dia puder publicar mais uns quantos livros importará fazê-lo por sua conta e risco, livre, que as letras não podem ter grilhões nas asas, nem estar sujeitas a políticas, influências ou paradigmas."










Em Dezembro de 1997
publicou "Diário de bordo dum pescador - Na rota do bacalhau".
Das palavras escritas pelo próprio José Barreto em "Nota do Autor" sublinho:


"Obra de ficção (romance) o "Diário de Bordo dum Pescador" é uma narrativa de factosimaginários,que não repugna à verdade, formando uma história fictícia. Personagem olhada frequentemente e apenas como expoente técnico e operacional da pesca do bacalhau, tardiamente perpetuado no espaço cultural da minha terra, cabe-me assim prestar-lhe as honras e o respeito há muito merecido."


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Em Junho de 1999
publicou
"Cânticos de Paixão e Outras Cores" (Poesia)
que dedicou
"A todos os náufragos da paixão, quaisquer que tenham sido as suas cores."


São desse livro os três poemas que aqui transcrevo:



A luta


Existe em ti
Meu amor,
A força viva
Das águas em rápido...
A subtileza
Da espuma dos oceanos...
A liberdade!
Existe em ti
Meu amor,
O colorido
Das aves organizadas
E o trilhar
Das escarpas em flor...
A plenitude!
Existe em ti
Meu amor,
A vontade ainda nunca
Das lágrimas sempre ocultas,
O sorriso ainda frágil
Dos sonhos mal desbravados...
A nostalgia!
Mas é preciso continuar.




Em memória de mim

Há casas que se erguem no meu mirante
Como escolhos,
Empecilhos ou batidelas nos olhos.
Há verdes campos
Que ainda teimam em crescer,
Milhos embandeirados,
Trigos doirados
A contrariar o que irá acontecer.
Nestas terras de agras abertas
Vi meus avós labutar
Numa hora em que era preciso viver,
Bulir, e manter as contas certas.

Cheios de suor e de alegria
Não conheciam tristezas...
Vingavam como searas de loiros trigos
E campos verdes de milhos espigados
Irrompendo das incertezas.



Destino
Quis a musa
Que me cumprisse assim...
Rio de leito profundo
A porfiar-me neste mundo,
Até ao fim!...

3 comentários:

Anónimo disse...

E cá continuamos a encontrar os amigos. É bom! Um abraço grande para o Zé, na certeza de que - como dia outro Zé (Duarte) - "poeta bom não morre à sombra". E outro abraço, está claro, para o marinheiro que conduz este Barco dos Amigos para Sudoeste. A distância é muitas vezes apenas uma ilusão geográfica.

Anónimo disse...

Estive aqui e fiz uma música.
No mesmo instante em que li "A luta".

Gravei a idéia e amanhã tento torná-la apresentável.

Old SeaMan (à deriva, desde o Brasil)



("Estive aqui e fiz uma música" já é outra idéia...)

Precious Ol' disse...

É possível conseguir um e-mail do Zé Barreto? Muito obrigado.
(oldnic1 at gmail.com)