Considerando o que foi dito durante estes dias sobre a edição, pela Secção Cultural da ACD Os Ílhavos, do livro de João Esteves de Almeida, "Vista Alegre - A minha terra" decidi abrir uma excepção e alargar o espaço anteriormente previsto.
Nesse sentido, decidi deixar-vos aqui:
cópia digitalizada da notícia composta pelo amigo Carlos Duarte e publicada no "Diário de Aveiro" de 4 de Fevereiro último; cópia digitalizada dos textos publicados nesta última edição do jornal "O Ilhavense" , dirigido pelo meu velho amigo Torrão Scaramento (notíca do lançamento, editorial, carta aberta ao João Balseiro) e do "cartoon", com o título genérico "O Codre", da autoria do grande Artista Adélio Simões (outro companheiro e amigo), também publicado em "O Ilhavense" ; e ainda o texto de apresentação do referido livro, que (contra o parecer da sua autora Maria Edite Vieira da Silva), considero merecedor de ser lido (e que sei que só a falta de espaço impediu que fosse publicado na íntegra em "O Ilhavense"); atrevo-me ainda a aconselhar-vos a consulta do "site" da Rádio Terra Nova (http://www.terranova.pt/) para tomarem conhecimento da informação relativa à ACD "Os Ílhavos" editada entre 1 e 4 do mês corrente de Fevereiro.
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Notícia de "Diário de Aveiro"
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A notícia em O Ilhavense:
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Texto de apresentação do livro “Vista Alegre, a minha terra”, de João Esteves de Almeida, em 2 de Fevereiro de 2008:
Vivemos um tempo de mudanças. Somos uma geração de gente que assistiu ao ruir de impérios, à destruição de equilíbrios, ao esgotamento de modelos económicos, uma geração a quem faltam elementos de análise credíveis para perspectivar o futuro.
Muitos vestígios palpáveis do nosso passado, mesmo de um passado mais recente, já desapareceram, quer pela acção destruidora do homem, quer pela acção involuntária do tempo. Apesar disso, muitos outros existem ainda na memória dos mais velhos, passados de boca em boca, em forma de histórias de vida.
Não há presente sem passado. É dele que se constrói a nossa identidade e é ele que nos dá individualidade neste mundo cada vez mais global.
O conhecimento das vivências dos nossos antepassados tem, entre outras, a função e o sentido de nos manter vivos, de nos fazer recuperar as energias adormecidas, e é factor de inesgotável e permanente enriquecimento espiritual da vida colectiva. É, por isso, importante preservar essas memórias, não como coisas inertes, de museu, mas como coisas vivas, em permanente renovação, como o próprio presente em que se projectam.
Provavelmente, para alguns de nós, a nossa herança, a nossa História, continua a resumir-se aos vestígios materiais relevantes deixados pelos nossos antepassados, aos palácios, aos museus, às igrejas, e é resultado de grandes acontecimentos, de decisões de “grandes homens”. Mas não!... Hoje, a História não se constrói apenas disso. A História faz-se também de relatos de experiências do quotidiano, de diversos olhares sobre a realidade, de narrativas autobiográficas que traduzem vivências de trabalho e de vida de grupos e populações, relatos que nos mostram como as comunidades conviviam e se relacionavam, que nos falam das suas crenças, dos seus sonhos, das suas lutas, das suas pequenas vitórias, relatos que nos permitem entender melhor as cidades, os campos, as vilas, os seus habitantes, os guettos, os grupos marginalizados, enfim, o quotidiano popular.
A História entendida como ciência exacta e objectiva, como mera justaposição de factos, construída sem qualquer influência do investigador, a História chamada “de cola e tesoura”, tão ao gosto de Collingwood, está ultrapassada.
No período entre as duas guerras, Lucien Febvre idealizou uma revista de história que fundou, em 1929, em parceria com Marc Block, a conhecida “Revue des Annales”. Essa parceria, formada na Universidade de Estrasburgo, durou apenas treze anos, mas foi quanto bastou para que se iniciassem marcantes conquistas nesta disciplina.
A partir dos "Annales", definiram-se as características de uma abordagem histórica que se tornou conhecida como “ História das Mentalidades”, a qual, de forma sistematizada, analisa os sentimentos e costumes dos povos em determinado período histórico, baseando-se no princípio do "tempo longo", já que esses hábitos se transformam de maneira lenta ao longo dos tempos.
Esta nova escola rompeu com o culto dos heróis, deixou de atribuir a evolução histórica à acção dos homens ditos “ilustres” e passou a valorizar o quotidiano, a arte, o trabalho das populações nas fábricas, nos campos, nas cidades, entendendo que a psicologia social é um elemento fundamental para a compreensão das transformações levadas a cabo pela Humanidade. Também os seguidores de Wilhem Wundt autor de "Elementos de Psicologia das Multidões", entraram nessa onda, criando uma concepção psicológico-social da História e defendendo que os acontecimentos históricos são, sobretudo, resultantes de manifestações espirituais produzidas pela vida em comunidade e que os factos históricos são sempre o reflexo do estado psicológico reinante em determinado agrupamento social.
Já na década de 70 do século XX, historiadores e sociólogos herdeiros do pensamento da escola de Chicago, redescobriram o valor da entrevista e dos escritos pessoais autobiográficos na investigação histórica, considerando que as “histórias de vida” são capazes de fornecer informação coerente pela própria natureza, enraizada na experiência social real, capaz de lhes proporcionar achados sociológicos singulares frente aos vazios e lacunas da historiografia oficial.
Como diz Teresa Caldeira na sua obra Uma incursão pelo lado não respeitável do trabalho de campo “Há um consenso entre pesquisadores que trabalham com histórias de vida, que uma boa história “desborda” e deixa vir à tona elementos sequer imaginados e que surpreendem o próprio narrador.” A “história de vida”, diz Teresa Caldeira, “devolve a palavra aos silenciosos e aos esquecidos da História e projecta uma iluminação particular ao social; elas tiram a palavra dos lugares de silêncio e opõem-se ao ponto de vista enquadrado em sistemas de pensamento exclusivos, redutores e totalitários.”
As “histórias de vida” têm hoje, portanto, um papel muito importante na investigação histórica. Como referi, a crise de modelos sociais numa época em que os media parecem homogeneizar as sociedades, devolve às pessoas a difícil tarefa de construir a sua História. Histórias particulares, de género, de classe, de nacionalidade, que rompem o discurso canónico da História entendida como formulação de um saber monotético. Essas histórias articulam, não uma verdade universal, mas um saber exemplar particular – comunicação da sabedoria prática, de um reconhecimento de vida e de experiência – que os meios de comunicação de massas não fazem circular, a não ser convertidas em “mercadoria-espectáculo”
É neste contexto que são importantes os livros de memórias como “Vista Alegre, a minha terra”
A Vista Alegre e a sua fábrica são do conhecimento de todos. Todos temos mais ou menos a ideia de que, desde meados do século XVIII a Inglaterra iniciou, com a revolução industrial, um profundo processo de transformações económico-sociais sendo, posteriormente acompanhada pelo resto da Europa e que, em Portugal, José Ferreira Pinto Basto foi dos primeiros a dar esse passo, fundando, em 1824, no concelho de Ílhavo, a fábrica da Vista Alegre, um empreendimento arriscado que exigia uma produção de alta qualidade e preços adequados às exigências da concorrência.
Quem conhece a história da fábrica sabe, também que, resolvidos os problemas técnicos e institucionais, Pinto Basto passou a preocupar-se com outras questões. O estabelecimento de uma fábrica como a da Vista Alegre, numa quinta isolada, levantara-lhe desde logo o problema do alojamento dos seus funcionários. A solução encontrou-a com a construção de um bairro operário dentro do perímetro das instalações da empresa. Eram casas com poucas condições de conforto e higiene (embora dentro dos padrões da época) e, pela habitação que ocupava, cada operário ficava a pagar à fábrica uma renda simbólica, correspondente a um dia de salário. Esta iniciativa da construção de um bairro operário seria hoje, naturalmente, encarada como uma medida puramente empresarial, com vista à captação de mão-de-obra. Mas não era assim que pensavam os funcionários da empresa. Pelo contrário. Esta iniciativa era para eles reflexo da preocupação e interesse que os “senhores” da Vista Alegre tinham pelos seus servidores. De facto, José Ferreira Pinto Basto revelou sempre, em relação aos seus trabalhadores, algumas preocupações de carácter social e cultural deveras invulgares para os padrões da época.
O baixo nível de instrução das famílias operárias foi uma das suas primeiras preocupações e levou-o a criar, em 1826, nas instalações da própria empresa, um colégio com internato onde se ensinava aos aprendizes de ambos os sexos, além dos conhecimentos necessários para o fabrico da porcelana e do vidro, a leitura e a escrita, a aritmética e o desenho, a pintura e a música. Este colégio iniciou as suas actividades com 13 alunos mas, quando encerrou, em 1842, era já frequentado por cerca de 40. Apesar do encerramento do colégio, a Vista Alegre continuou a ministrar aulas de desenho, pintura e modelação, só interrompendo esta actividade quando foi inaugurada a escola industrial de Aveiro (1894), recomeçando pouco depois, por considerar que a nova instituição não fornecia qualquer técnico ou artista interessado em trabalhar nas oficinas a fábrica.
Outra iniciativa interessante de José Ferreira Pinto Basto foi a criação, também em 1826, de uma filarmónica e de um grupo de teatro exclusivamente compostos por funcionários da empresa. Com estas actividades, desde muito cedo se iniciaram na Vista Alegre os concertos, os bailes, a pintura de cenários, as representações teatrais que, além de permitirem a ocupação do tempo de lazer, depressa se transformaram em fonte de educação e de cultura da maioria dos empregados fabris.
O desporto também não foi esquecido pelos “senhores” da Vista Alegre e, em 1851, já não por iniciativa do fundador da fábrica (que entretanto falecera), mas por um dos seus herdeiros, foi construído o primeiro campo de jogos.
Além de manterem as preocupações de carácter social, cultural e recreativo do fundador da Vista Alegre, os continuadores da sua obra parece terem mantido também as suas preocupações de ordem social. Em 1851 fundaram uma cooperativa de consumo, com preços mais vantajosos que os do mercado, onde eram vendidos, a pronto ou a prestações, alimentos, vestuário, calçado e outros produtos de uso comum e, ainda, antes do final do século, foi criada a primeira instituição de carácter assistencial para os funcionários - a Filantrópica - substituída, em 1923, pelo Montepio da Fábrica de Porcelana da Vista Alegre, instituição que garantia aos funcionários assistência médica e medicamentosa, além de reformas e de subsídios em caso de invalidez permanente.
Por volta de 1924 a administração resolveu melhorar a malha urbana da povoação, tanto ao nível de edifícios como de arruamentos, construiu um refeitório e fundou uma Corporação de Bombeiros. Surgiu também uma comissão de melhoramentos para supervisionar a instalação dos serviços municipais e foram criadas diversas secções com funções mais específicas e de grande interesse para a comunidade local: a secção de higiene, para remoção dos lixos e limpeza e conservação das ruas; a secção de jardinagem, a secção de abastecimento de água e luz e a secção escolar, destinada à instrução e à ginástica. Surgiram ainda serviços de assistência médica e farmacêutica, uma comissão de Desporto e Recreio, com o propósito de organizar os espectáculos de teatro, os concertos da banda, dirigir o Grémio e a sua biblioteca e estimular o gosto pelo desporto. Procurando, também ela, contribuir para este último objectivo, a administração da fábrica resolveu oferecer à população da Vista Alegre um campo de futebol com os respectivos balneários.
E foi assim que o outrora “morgadio” da Vista Alegre se tornou um interessante e animado centro industrial, constituído por uma série de edifícios que circundavam um largo central, amplo e densamente arborizado, dominado pelo edifício da Capela de Nª Sr.ª da Penha de França, mandada construir na época barroca (1699) pelo Bispo de Miranda, D. Manuel de Moura Manuel e atribuída a João Antunes. De um dos lados da capela, ergue-se, ainda hoje, o edifício imponente, de traço sóbrio, que foi em tempos casa dos fundadores; Do outro, a fábrica, lugar de encontro diário de sucessivas gerações de empresários, artistas e operários, espaço colectivo de muitas experiências e memórias pessoais, parte integrante de muitas histórias de vida, de muitos e diversos olhares, como o que nos é dado por João Esteves de Almeida nesta sua “Vista Alegre, minha terra”.
Maria Edite Vieira da Silva
Vivemos um tempo de mudanças. Somos uma geração de gente que assistiu ao ruir de impérios, à destruição de equilíbrios, ao esgotamento de modelos económicos, uma geração a quem faltam elementos de análise credíveis para perspectivar o futuro.
Muitos vestígios palpáveis do nosso passado, mesmo de um passado mais recente, já desapareceram, quer pela acção destruidora do homem, quer pela acção involuntária do tempo. Apesar disso, muitos outros existem ainda na memória dos mais velhos, passados de boca em boca, em forma de histórias de vida.
Não há presente sem passado. É dele que se constrói a nossa identidade e é ele que nos dá individualidade neste mundo cada vez mais global.
O conhecimento das vivências dos nossos antepassados tem, entre outras, a função e o sentido de nos manter vivos, de nos fazer recuperar as energias adormecidas, e é factor de inesgotável e permanente enriquecimento espiritual da vida colectiva. É, por isso, importante preservar essas memórias, não como coisas inertes, de museu, mas como coisas vivas, em permanente renovação, como o próprio presente em que se projectam.
Provavelmente, para alguns de nós, a nossa herança, a nossa História, continua a resumir-se aos vestígios materiais relevantes deixados pelos nossos antepassados, aos palácios, aos museus, às igrejas, e é resultado de grandes acontecimentos, de decisões de “grandes homens”. Mas não!... Hoje, a História não se constrói apenas disso. A História faz-se também de relatos de experiências do quotidiano, de diversos olhares sobre a realidade, de narrativas autobiográficas que traduzem vivências de trabalho e de vida de grupos e populações, relatos que nos mostram como as comunidades conviviam e se relacionavam, que nos falam das suas crenças, dos seus sonhos, das suas lutas, das suas pequenas vitórias, relatos que nos permitem entender melhor as cidades, os campos, as vilas, os seus habitantes, os guettos, os grupos marginalizados, enfim, o quotidiano popular.
A História entendida como ciência exacta e objectiva, como mera justaposição de factos, construída sem qualquer influência do investigador, a História chamada “de cola e tesoura”, tão ao gosto de Collingwood, está ultrapassada.
No período entre as duas guerras, Lucien Febvre idealizou uma revista de história que fundou, em 1929, em parceria com Marc Block, a conhecida “Revue des Annales”. Essa parceria, formada na Universidade de Estrasburgo, durou apenas treze anos, mas foi quanto bastou para que se iniciassem marcantes conquistas nesta disciplina.
A partir dos "Annales", definiram-se as características de uma abordagem histórica que se tornou conhecida como “ História das Mentalidades”, a qual, de forma sistematizada, analisa os sentimentos e costumes dos povos em determinado período histórico, baseando-se no princípio do "tempo longo", já que esses hábitos se transformam de maneira lenta ao longo dos tempos.
Esta nova escola rompeu com o culto dos heróis, deixou de atribuir a evolução histórica à acção dos homens ditos “ilustres” e passou a valorizar o quotidiano, a arte, o trabalho das populações nas fábricas, nos campos, nas cidades, entendendo que a psicologia social é um elemento fundamental para a compreensão das transformações levadas a cabo pela Humanidade. Também os seguidores de Wilhem Wundt autor de "Elementos de Psicologia das Multidões", entraram nessa onda, criando uma concepção psicológico-social da História e defendendo que os acontecimentos históricos são, sobretudo, resultantes de manifestações espirituais produzidas pela vida em comunidade e que os factos históricos são sempre o reflexo do estado psicológico reinante em determinado agrupamento social.
Já na década de 70 do século XX, historiadores e sociólogos herdeiros do pensamento da escola de Chicago, redescobriram o valor da entrevista e dos escritos pessoais autobiográficos na investigação histórica, considerando que as “histórias de vida” são capazes de fornecer informação coerente pela própria natureza, enraizada na experiência social real, capaz de lhes proporcionar achados sociológicos singulares frente aos vazios e lacunas da historiografia oficial.
Como diz Teresa Caldeira na sua obra Uma incursão pelo lado não respeitável do trabalho de campo “Há um consenso entre pesquisadores que trabalham com histórias de vida, que uma boa história “desborda” e deixa vir à tona elementos sequer imaginados e que surpreendem o próprio narrador.” A “história de vida”, diz Teresa Caldeira, “devolve a palavra aos silenciosos e aos esquecidos da História e projecta uma iluminação particular ao social; elas tiram a palavra dos lugares de silêncio e opõem-se ao ponto de vista enquadrado em sistemas de pensamento exclusivos, redutores e totalitários.”
As “histórias de vida” têm hoje, portanto, um papel muito importante na investigação histórica. Como referi, a crise de modelos sociais numa época em que os media parecem homogeneizar as sociedades, devolve às pessoas a difícil tarefa de construir a sua História. Histórias particulares, de género, de classe, de nacionalidade, que rompem o discurso canónico da História entendida como formulação de um saber monotético. Essas histórias articulam, não uma verdade universal, mas um saber exemplar particular – comunicação da sabedoria prática, de um reconhecimento de vida e de experiência – que os meios de comunicação de massas não fazem circular, a não ser convertidas em “mercadoria-espectáculo”
É neste contexto que são importantes os livros de memórias como “Vista Alegre, a minha terra”
A Vista Alegre e a sua fábrica são do conhecimento de todos. Todos temos mais ou menos a ideia de que, desde meados do século XVIII a Inglaterra iniciou, com a revolução industrial, um profundo processo de transformações económico-sociais sendo, posteriormente acompanhada pelo resto da Europa e que, em Portugal, José Ferreira Pinto Basto foi dos primeiros a dar esse passo, fundando, em 1824, no concelho de Ílhavo, a fábrica da Vista Alegre, um empreendimento arriscado que exigia uma produção de alta qualidade e preços adequados às exigências da concorrência.
Quem conhece a história da fábrica sabe, também que, resolvidos os problemas técnicos e institucionais, Pinto Basto passou a preocupar-se com outras questões. O estabelecimento de uma fábrica como a da Vista Alegre, numa quinta isolada, levantara-lhe desde logo o problema do alojamento dos seus funcionários. A solução encontrou-a com a construção de um bairro operário dentro do perímetro das instalações da empresa. Eram casas com poucas condições de conforto e higiene (embora dentro dos padrões da época) e, pela habitação que ocupava, cada operário ficava a pagar à fábrica uma renda simbólica, correspondente a um dia de salário. Esta iniciativa da construção de um bairro operário seria hoje, naturalmente, encarada como uma medida puramente empresarial, com vista à captação de mão-de-obra. Mas não era assim que pensavam os funcionários da empresa. Pelo contrário. Esta iniciativa era para eles reflexo da preocupação e interesse que os “senhores” da Vista Alegre tinham pelos seus servidores. De facto, José Ferreira Pinto Basto revelou sempre, em relação aos seus trabalhadores, algumas preocupações de carácter social e cultural deveras invulgares para os padrões da época.
O baixo nível de instrução das famílias operárias foi uma das suas primeiras preocupações e levou-o a criar, em 1826, nas instalações da própria empresa, um colégio com internato onde se ensinava aos aprendizes de ambos os sexos, além dos conhecimentos necessários para o fabrico da porcelana e do vidro, a leitura e a escrita, a aritmética e o desenho, a pintura e a música. Este colégio iniciou as suas actividades com 13 alunos mas, quando encerrou, em 1842, era já frequentado por cerca de 40. Apesar do encerramento do colégio, a Vista Alegre continuou a ministrar aulas de desenho, pintura e modelação, só interrompendo esta actividade quando foi inaugurada a escola industrial de Aveiro (1894), recomeçando pouco depois, por considerar que a nova instituição não fornecia qualquer técnico ou artista interessado em trabalhar nas oficinas a fábrica.
Outra iniciativa interessante de José Ferreira Pinto Basto foi a criação, também em 1826, de uma filarmónica e de um grupo de teatro exclusivamente compostos por funcionários da empresa. Com estas actividades, desde muito cedo se iniciaram na Vista Alegre os concertos, os bailes, a pintura de cenários, as representações teatrais que, além de permitirem a ocupação do tempo de lazer, depressa se transformaram em fonte de educação e de cultura da maioria dos empregados fabris.
O desporto também não foi esquecido pelos “senhores” da Vista Alegre e, em 1851, já não por iniciativa do fundador da fábrica (que entretanto falecera), mas por um dos seus herdeiros, foi construído o primeiro campo de jogos.
Além de manterem as preocupações de carácter social, cultural e recreativo do fundador da Vista Alegre, os continuadores da sua obra parece terem mantido também as suas preocupações de ordem social. Em 1851 fundaram uma cooperativa de consumo, com preços mais vantajosos que os do mercado, onde eram vendidos, a pronto ou a prestações, alimentos, vestuário, calçado e outros produtos de uso comum e, ainda, antes do final do século, foi criada a primeira instituição de carácter assistencial para os funcionários - a Filantrópica - substituída, em 1923, pelo Montepio da Fábrica de Porcelana da Vista Alegre, instituição que garantia aos funcionários assistência médica e medicamentosa, além de reformas e de subsídios em caso de invalidez permanente.
Por volta de 1924 a administração resolveu melhorar a malha urbana da povoação, tanto ao nível de edifícios como de arruamentos, construiu um refeitório e fundou uma Corporação de Bombeiros. Surgiu também uma comissão de melhoramentos para supervisionar a instalação dos serviços municipais e foram criadas diversas secções com funções mais específicas e de grande interesse para a comunidade local: a secção de higiene, para remoção dos lixos e limpeza e conservação das ruas; a secção de jardinagem, a secção de abastecimento de água e luz e a secção escolar, destinada à instrução e à ginástica. Surgiram ainda serviços de assistência médica e farmacêutica, uma comissão de Desporto e Recreio, com o propósito de organizar os espectáculos de teatro, os concertos da banda, dirigir o Grémio e a sua biblioteca e estimular o gosto pelo desporto. Procurando, também ela, contribuir para este último objectivo, a administração da fábrica resolveu oferecer à população da Vista Alegre um campo de futebol com os respectivos balneários.
E foi assim que o outrora “morgadio” da Vista Alegre se tornou um interessante e animado centro industrial, constituído por uma série de edifícios que circundavam um largo central, amplo e densamente arborizado, dominado pelo edifício da Capela de Nª Sr.ª da Penha de França, mandada construir na época barroca (1699) pelo Bispo de Miranda, D. Manuel de Moura Manuel e atribuída a João Antunes. De um dos lados da capela, ergue-se, ainda hoje, o edifício imponente, de traço sóbrio, que foi em tempos casa dos fundadores; Do outro, a fábrica, lugar de encontro diário de sucessivas gerações de empresários, artistas e operários, espaço colectivo de muitas experiências e memórias pessoais, parte integrante de muitas histórias de vida, de muitos e diversos olhares, como o que nos é dado por João Esteves de Almeida nesta sua “Vista Alegre, minha terra”.
Maria Edite Vieira da Silva
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Editorial de "O Ilhavense" :
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"O Codre" de Adélio Simões:
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